CAPÍTULO 6
Fogos Do Holocausto
Pés rápidos sobre pedras rústicas. O velho rabino caminhava apressadamente sobre a calçada de ardósias antigas ao lado esquerdo da rua Maiselova parcialmente iluminada por tênues lâmpadas elétricas. Seguia na direção da Velha-Nova Sinagoga de Praga. Era noite de 14 de setembro de 1939, lua nova de Tishri, o sétimo mês hebreu, brumas do ano novo judeu. Ruas adjacentes apresentam suas belezas adornadas com grandes paralelepípedos ardósios, um convite à introspecção.
Nuvens pálidas semiocultavam a lua nova como uma noiva adornada com um vestido transparente. Seis quarteirões atrás, as vozes dos homens da Gestapo nazista, a polícia de Himmler, se faziam ouvir junto aos gritos dos moradores do bairro enquanto esmurravam as portas das casas forçando suas entradas aos gritos e empurrões.
- Onde ele está? O velho rabino? Vocês o estão escondendo aqui? – Vociferavam os homens de brilhantes uniformes negros, que abriam passagem derrubando ao chão os moradores sob a mira de suas lugers alemãs engatilhadas sobre as frontes dos habitantes do shtetl de Praga Interpelando-os voraz e violentamente.
A Staronová Synagoga, construída em 1270 no também antigo bairro Josefov, guarda, em seu sótão seu maior e assombroso segredo, o qual Himmler desejava tomar sob seu controle: O corpo adormecido do Golem criado, no século dezesseis, pelo Rabino Loëw - o Maharal de Praga.
O rabino Yoseff Cohen Há’Levi tinha pressa. Queria chegar antes da Gestapo. Sua intenção era acordar a antiga criatura moldada da argila colhida das margens do Rio Moldova no século dezesseis, e a lua nova do ano novo favorecia este momento. Enquanto caminhava apressadamente, via, ao longe, outras sinagogas dos bairros adjacentes que ardiam consumidas pelos fogos maléficos de Adolf Hitler. Lembrou-se da carta escrita a ele pelo amigo da Yeshivá Qol Yehudá de Jerusalém, o rabino Yehudá Leib Ashlag, e que lhe avisava dos fumos negros que pairavam sobre os judeus da Europa, o que viu em uma visão, aconselhando os rabinos da Europa sobre o mal que estava por vir.
Yoseff sabia que, ao entrar na sinagoga, teria que sentar na antiga e ornamentada cadeira do Rabino Loëw para receber a alma de Betzalel momentaneamente por yibur ou, quem sabe, permanentemente[1], pois somente se a centelha do criador estivesse nele, poderia ressuscitar o ser feito do barro, e depois poderia encontrar a passagem secreta que levaria ao sótão oculto onde a criatura estava escondida. Tinha esperança de que o Golem o ajudasse a salvar o povo da tirania nazista que o estava dizimando. Ao chegar, deteve-se por um momento, se virou e contemplou a lua e as estrelas e percebeu que ela ainda navegava os mares da constelação de Libra. Entrou por uma passagem adjacente lateral à sinagoga e encontrou a porta que o conduziria para dentro. Enfiou a mão esquerda no bolso do kitel preto e pegou um dos dois pequenos pergaminhos amarrados com tiras feitas de pele de carneiro.
- Onde está a passagem secreta? – Balbuciou enquanto tomava do bolso o escrito. Sabia da existência desta passagem desde sua mais tenra idade quando seu pai lhe contou, em uma noite chuvosa, a lenda do Golem de Praga. O documento secreto esteve aos cuidados do seu próprio Abba[2].
O pergaminho continha não apenas as instruções que o levariam à passagem secreta cuja entrada era ao lado do Aron ha’Qodesh[3] e que o conduziria ao sótão escondido onde repousava o corpo da opulenta criatura, mas também o conhecimento para acordar o golem. Ele jamais o tinha aberto, pois havia sido instruído para o fazer somente se o povo estivesse em perigo.
A sinagoga estava parcialmente iluminada por velas que foram acesas pelos membros para a prece de Amidá de Arvit e que proporcionavam uma atmosfera maravilhosa e mística. Sabia, pela tradição desde o Maharal, que eram setenta e duas velas, nenhuma a mais, nenhuma a menos. Um número místico que ocultava um segredo. Aquelas luzes misticas conduziram seus olhos à cadeira de Betzalel que descansava ao lado da Arca sagrada. Mas, de fato, ele já sabia que, aquela não era a cadeira de Judá, mas uma réplica, pois, a verdadeira fora escondida para evitar que os desavisados se sentassem sobre ela. Não era permitido pelos céus. Seu pai lhe havia dito, quando ele era criança, que a verdeira fora escondida em um lugar secreto. Quem poderia ter mérito para se sentar na cadeira do grande rabino de Praga? Somente aquele que para ela fora destinado.
- Baruch ata Atika Qadishá Gal há’sodot – Bendito sejas Tu ó Ancião Sagrado, que revelas os segredos – pronunciou o rabino Joseff a brachá[4] apropriada para a ocasião e abriu o pergaminho que tirou do bolso e começou a ler o que nele estava escrito. Ficou surpreso ao descobrir que estava assinado pelo próprio Grão Rabino de Praga à época em que o monstro foi criado.
O documento havia sido passado de mestre para discípulo desde o Rabi Betzalel até que chegou aos cuidados do pai do Rabino Joseff, o rabino Lavan Cohen Ha’Levi, um habidoloso artesão e escriba cujos os Tefilin que fazia eram muito elogiados e apreciados e que era o Rabino chefe de Praga. Palavras escritas com letras estranhas as quais Joseff identificou como sendo o Alfabeto Malachim e uma prece em hebraico preenchiam a claff. Joseff o aproximou da luz de uma das velas acesas para poder ler melhor as letras e palavras no pergaminho. Logo descobriu o nome de cinco anjos escritos em angélico e uma oração com duzentas e dezesseis letras[5]. Palavras escritas ao redor da claff continham uma inscrição em código que Joseff descobriu ser a escrita atbash. Cinco pontos interligados por linhas estavam também anotados no pergaminho, os quais, identificou o Rabino como sendo o desenho de uma constelação estelar: - Libra! – Balbuciou. A lua estava desenhada acima destes cinco pontos. Agradeceu ao conhecimento astrológico que seu pai lhe havia instruído sem o qual não poderia ter identificado a constelação.
A lua nova do ano novo era a única na qual a criatura que dormia no sótão há quatro séculos, poderia ser despertada, a noite na qual o satã não tem domínio. Joseff sabia também que teria que colocar em prática os conhecimentos que obteve daquele pequeno livro de capa preta gravado com letras douradas que seu Abba havia lhe dado.
O rabino tinha esperança de que a Gestapo não o encontrasse imediatamente, dando-lhe tempo para as kavanot[6] e invocações necessárias para acordar o ser de argila. Ele sabia que o Grão Rabi de Praga havia colocado um selo sobre a entrada do sótão e ninguém jamais poderia entrar sem a permissão dos céus e da alma de Betzalel, o que indicava que ele primeiro deveria se sentar na cadeira de Judá Loëw e, se zechut[7] tivesse, receberia por yibur, a alma do Grão Rabi e assim, poderia quebrar o selo e entrar no sótão para despertar o Golem, o antigo protetor dos judeus do gueto de Josefov em Praga.
Enquanto caminhava para o lado do Armário Sagrado, lembrou-se, por um momento, das brincadeiras de menino e de como gostava de fazer pequenos homenzinhos de barro lembrando as histórias que seu pai e mestre lhe contava quando pequeno. Sorriu.
Encontrou a alavanca, conforme havia sido instruído pelo pergaminho e abriu a primeira passagem secreta. Tomou uma das velas acesas e se deixou escorregar para dentro da câmara oculta. Iluminados pelas flamas da vela, seus olhos encontraram a antiga cadeira do mestre de Praga que estava no centro da sala secreta. O assento místico descansava sobre um Escudo de David entalhado no chão ao centro da sala por algum dos artesãos do passado. Inscrições místicas em hebraico adornavam o círculo desenhado ao redor do hexagrama. Nomes de anjos estavam escritos nele numa escrita antiga que Joseff identificou como sendo “Transitus Fluvii[8]”. Se deteve por um momento. O temor do Divino lhe tomou a alma e um arrepio, como uma corrente elétrica lhe percorreu a cervical fazendo-o contorcer o pescoço.
- Santo, bendito sejas, tenho eu méritos para me sentar nesta cadeira tão sagrada? – Sussurrou em uma prece enquanto mantinha a mão direita sobre o coração. Se lembrou das palavras de seu velho pai “- não temas, quando o povo em perigo estiver e te desafiar a atos grandiosos”.
- Obrigado Abba sheli – balbuciou com emoção e, caminhando até a cadeira, respirou profundamente e se sentou. Talvez, em tempos de paz, teria um momento para atar seu Tefilin e vestir seu Talit, mas hoje, com a polícia de Himmler o caçando pelas casas do bairro, era preciso urgência. O Reichsführer[9] das Schutzstaffel[10] nazistas, havia sido instruído pelo Mentor do ocultismo de Adolf Hitler, Dietrich Eckart, para não apenas encontrar o golem e despertá-lo, mas também tomar posse do conhecimento secreto da fabricação da criatura.
“- Imagine um exército feito de golems” – insuflou a imaginação de Himmler em uma certa noite no Castelo Wewelsburg, onde os rituais da Ahnnerbe – a religião do 3° Reich – eram realizados. Himmler já fazia experiências com soldados mortos criando zumbis através de rituais onde as almas de antigos espíritos teutônicos eram invocadas a possuir os corpos de militares falecidos. Ele mesmo acreditava ser uma reencarnação. Mas está é uma outra recordação para um outro momento.
Não foi preciso muito tempo para “lembranças” de quatro séculos tomarem seus pensamentos depois que Joseff se sentou na cadeira de Betzalel. Sim! Estava certo que havia recebido o yibur da alma do Grão cabalista de Praga, o Maharal. Começou a recordar seus segredos e entre eles, a entrada secreta para o sótão onde repousava o corpo do golem, porém, uma dúvida permaneceu: Havia recebido o Yibur da alma do Maharal ali naquele momento ou no nascimento? Todos aqueles “homenzinhos de barro” – brincadeiras de criança? – Questionou a si mesmo. Foi um despertar! Aquele terrível momento no qual descobriu a si mesmo.
- “Eu sei quando o Golem foi criado” – Exclamou para si. – “Na primeira noite de Rosh há’Shanáh de 5207[11]” – Completou.
Fazia um sentido absolutamente esotérico que o Golem tivesse sido criado no ano 207 do 5° milênio, porque 207 é a gematria da palavra “Ráz” cujo significado é mistério divino.
Entre outras muitas e mistas recordações, uma particularmente flutuou em sua consciência. Levantou-se vagarosamente e afastou a cadeira olhando para a estrela de David que estava abaixo dela. Abaixou-se e pressionou o centro do Escudo, onde sinal de Aaron foi esculpido, com a palma da mão direta. Um ruído de engrenagens girando e madeira roçando madeira se fez ouvir. Subitamente, o chão se abriu sobre seus pés lançando poeira ao ar e obrigando-o a saltar para o lado, revelando uma passagem que conduzia para baixo da sala secreta por uma escada. O cheiro de mofo sequestrou seu olfato. Tomou a vela e desceu. Logo seus olhos descobriram muitas estantes repletas de livros e pergaminhos antigos. Certamente, em outros tempos, se sentaria ali por muitas horas para os estudar. Seus olhos perceberam também seis mesas retangulares separadas, três à esquerda e três à direta. Percebeu que ali, no passado, deveria ser a escola de Talmude Torá[12] do antigo shtetl de Praga. Caminhou entre as mesas pelo corredor guiado pelas flamas da vela e descobriu no final dele uma outra estante de madeira tomada por muitos livros e mais pergaminhos. Girou sobre si mesmo apontando a vela para o lugar nos qual seus olhos buscavam alguma porta ou passagem.
- Nenhuma porta? Mas deve estar aqui embaixo – murmurou. Voltou-se para a estante no final do corredor entre as mesas e desta vez seus olhos perceberam algo.
- Hummm. É isto! Tem que ser! Sussurrou. Entre os livros naquela estante estava um em particular que apreciava por demais: O Sêfer Yetzirah – O Livro da Formação. Recordou-se do presente que seu pai lhe dera em seu bar mitzvá, o livro de capa preta e letras douradas já desgastadas que trazia no bolso do kitel – O Sêfer Yetzirah. Trocou a vela para a mão esquerda e puxou com a direita o livro da estante enquanto colocava a vela no lugar do livro. Abriu-o e de pronto percebeu a anotação em hebraico no verso da capa:
“Tehilim 91:1 – A porta será aberta para aquele que conhece o segredo oculto por gematria neste passuq[13]”. Fez um gesto para tomar a luz novamente em sua mão e foi quando notou um criptograma de dez letras fixado na parede onde o livro repousava.
“Segredo de gematria? ” – Pensou enquanto permitia que o verso viesse à tona em sua mente. “Yohev be’seter elyon be’tzel Shaddai itlonan (יושב בסתר עליון בצל שדי יתלונן) ”.
Sua mente focou-se instintivamente na palavra “be’seter (בסתר) ” cujo significado “no esconderijo” lhe foi muito sujestivo. “E agora? ” – Pensou. Calculou a gematria e descobriu o valor 662. Olhou para o esotérico livro em sua mão. Sua alma se concentrou nas dez letras hebraicas que compunham o título do livro. Voltou a atenção para o Criptógrafo colocado na parede atrás da estante.
-“Dez Letras. Mas é claro” – Exclamou no pensamento. Voltou novamente a atenção para o título do livro e contou as letras e descobriu que eram oito letras.
-“be’Sefer há’Yetziráh” – murmurou. “Dez letras”. Calculou a gematria: - “Razá Ila’ah! ” – Recitou. “ – 662!”. Colocou o livro que segurava em uma das mesas atrás de si e girou as letras hebraicas no Criptógrafo na parede até formarem “be’Sefer Yetzirah”. Uma pancada seca ressoou e a estante deslizou para a esquerda revelando uma porta atrás dela onde o Criptógrafo estava fixado. A porta destravou. Degraus ascendentes que o conduziriam finalmente ao sótão onde o guardião dos judeus criado por Judá Loëw o aguardava se revelaram.
Ao lado da escada ascendente notou um quadro onde leu uma inscrição em aramaico: “Você que aqui se aventurar a subir, guarde tua boca e em teu coração o temor de D’us”. Era certamente um aviso aos curiosos que quisessem se aventurar a subir ao sótão e descobrir o seu poderoso inquilino.
Conta a agadá do shtetl que, certa vez, um espia cristão enviado pelo bispo de Praga para Inquisição seguiu, na calada da noite, um dos antigos rabinos de Praga e entrou escondido na sinagoga. Ele subiu ao sótão, mas nunca retornou. Seus ossos foram descobertos na manhã seguinte. Judá Loëw mandou recitar por eles um Qadish e os enviou para serem sepultados do lado de fora do cemitério israelita do shtetl.
Se Joseff obtivesse sucesso em acordar a criatura, a partir daquela noite, Frankenstein, de Mary Sheley, se tornaria uma estória em quadrinhos.
Com temor, subiu o primeiro degrau em parou. Tentou suspirar profundamente, mas o cheiro de mofo não o permitiu. Tomou coragem assim mesmo e retomou a ascensão até o sótão.
- Treze degraus – disse a si mesmo. No final do décimo terceiro deu de frente com uma porta de madeira trabalhada com um desenho que se pareciam com mãos moldando barro.
- Certamente é aqui! – Exclamou num sussurro enquanto levava as mãos à boca. Notou a mezuzá fixada no batente direito um pouco acima da cabeça de quem entra. Deu mais um passo é levantou a mão direita tocando o objeto Sagrado e, como de costume, trazendo-a aos lábios.
Precisaria de muita coragem para entrar no local onde o Sagrado Grão Rabi de Praga havia escondido sua monstruosa criatura, o Golem protetor dos judeus do antigo gueto de Josefov.
[1] Reencarnação temporária.
[2] Papai.
[3] O Armário Sagrado onde o Rolo da Torah é mantido.
[4] Bênção.
[5] Ana Be’koach.
[6] Meditações.
[7]MERITO
[8] Alfabeto Passando O Rio.
[9] Comandante Militar.
[10] Tropa de proteção.
[11] 19 de Setembro de 1506.
[12] Local onde a Torah é estudada.
[13] Verso.
Excerto
O MAHARAL & O GOLEM DE PRAGA
Em Processo De Criação
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Autor
Deepak Sankara Veda
CAPA
ARTE & DESIGNE
DANIELA OWERGOOR
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